A vitalidade de uma comunidade mede-se também pela forma como se informa. Nenhum território se mantém saudável quando deixa de conseguir olhar para si próprio com rigor, espírito crítico e memória.

Nas aldeias, vilas e cidades do interior, onde a distância em relação aos grandes centros sempre obrigou a uma maior autonomia, o jornal local funcionou durante décadas como ponte, espelho e arquivo. Era ali que se registava o quotidiano que nunca chegaria aos canais nacionais, mas que fazia parte da identidade de quem ali vive.

O fecho de cada redação, a redução de cada equipa e a perda constante de leitores e anunciantes foram fragilizando esta estrutura de forma quase impercetível, mas contínua. Hoje, chegámos a um ponto em que já não estamos apenas a assistir à erosão do jornalismo local: estamos a assistir à possibilidade real dele desaparecer de vastas regiões do país.

Foi precisamente isso que esta semana voltou a ser evidenciado pela notícia que dá conta da intenção da distribuidora Vasp de deixar de assegurar a entrega diária de jornais em vários distritos do interior. Devido ao aumento dos custos logísticos e à quebra das vendas, a empresa admite abandonar zonas inteiras (Beja, Évora, Portalegre, Castelo Branco, Guarda, Viseu, Vila Real e Bragança) já no início de 2026.

O impacto desta decisão não é meramente comercial. Representa a possibilidade de largas comunidades perderem o acesso regular ao único meio de informação independente que ainda chega sem filtros a muitos cidadãos, especialmente aos mais velhos ou àqueles que não têm competências digitais para substituir o papel pelo ecrã. A confirmar-se, será um corte profundo no direito à informação e um retrocesso democrático difícil de quantificar.

 

“Perde-se, acima de tudo, a capacidade de vigiar o poder”

 

A verdade é que o jornalismo local sempre foi mais do que um produto mediático. É um serviço público não oficial, mas essencial. É o espaço onde os problemas do dia a dia ganham visibilidade e onde os poderes — políticos, económicos, associativos — são confrontados com o escrutínio que raramente encontram noutros formatos. Sem jornais que investiguem, contextualizem e questionem, as decisões passam a circular apenas pelas vias institucionais, como pelos comunicados das câmaras, publicações de associações, páginas oficiais. Nada disto substitui o trabalho de um jornalista presente no terreno, atento aos sinais que não cabem num comunicado e às histórias que não interessam a quem gere a narrativa.

Quando um território perde o seu jornal, algo se altera na própria forma como essa comunidade pensa e age. Perde-se o hábito da leitura crítica, o reflexo de questionar, a noção de que a informação não nasce por geração espontânea. E perde-se, acima de tudo, a capacidade de vigiar o poder.

O que não é noticiado deixa de existir como problema público. Obras que não avançam, concursos pouco transparentes, serviços que falham, comunidades que lutam sem apoio, sendo que tudo isto passa a acontecer na sombra. E um país onde grandes áreas vivem na sombra informativa é um país que aceita desigualdades profundas sem dar por elas.

A recente discussão sobre o fim da distribuição é apenas a face mais visível de um problema antigo, agravado por vários fatores, como o declínio da publicidade local, o envelhecimento dos leitores, a dificuldade de adaptação digital por parte de algumas empresas e a falta quase total de políticas públicas robustas para apoiar este setor. Há décadas que se fala de coesão territorial, mas raramente se pensa na informação como parte dessa coesão. O resultado está à vista, isto é, jornais locais a lutar pela sobrevivência com redações mínimas, jornalistas que acumulam funções impossíveis e um modelo económico que deixou de ser viável, apesar da importância social que continua a carregar.

“É a perda de uma voz”

É por isso que esta crise deve ser vista como um sinal de alerta para todos, seja Estado, autarquias, empresas ou cidadãos. O jornalismo local não pode continuar dependente exclusivamente das regras do mercado. O país precisa de discutir medidas que garantam que a imprensa de proximidade chega a todo o lado: apoios à distribuição em zonas de baixa densidade, incentivos financeiros para redações regionais, programas públicos de literacia mediática que reforcem a importância da leitura informativa e mecanismos transparentes de financiamento que preservem a independência editorial.

A perda de um jornal não é apenas a perda de uma publicação. É a perda de uma voz. De uma memória. De um espaço de debate. De um ponto de encontro cívico. Se permitirmos que o interior fique reduzido a comunicados oficiais e a ecos de redes sociais, estaremos a empobrecer o país como um todo.

O que está em causa não é nostalgia pelo papel, mas a defesa de um direito básico, neste caso, o direito de cada comunidade a ser informada por quem observa, questiona e escreve com a liberdade e o rigor que fazem a diferença entre democracia e silêncio.